Lydia Okumura

A imaterialidade em tudo

São Paulo
08.06 — 27.07.2024

A imaterialidade em tudo

Pontogor 

“Quero expressar a imaterialidade em tudo”

Lydia Okumura

“A obra é sempre aquilo que nos olha da sua mudez absoluta, que apela nossa atenção sem, contudo, co-responder ao nosso olhar, ao nosso pedido de revelação. Ela é aquilo que, chamando-nos, não se dá à relação, ri-se de toda projeção sobre ela e escapa”.

Maria Continentino Freire

 

Uma grande forma geométrica parece se desprender de uma das paredes. Dela se despegando e nela se fundindo, bem à minha frente. Vejo alguns de seus contornos como quem vê um desenho no papel. Mas parte dos seus traços desenham o espaço fora da parede, fora do papel. O chão da galeria, que em outros casos passaria despercebido por mim, agora se reforça como suporte para esse desenho. Caminho sobre o chão; e sobre a obra, caminho. Meus movimentos torcem e destorcem a enorme figura, que de modo simples e econômico, me apresenta ideias. Uma ideia, uma verdade, um fragmento de conhecimento catalisam sentenças. Como essas que, nesse texto, começam a se rascunhar.

Se, em um primeiro momento, apreendo as geometrias como se fossem cubos, depois já não posso mais afirmá-lo. Esse fletir dos contornos em Metamorphosys II (1981) ocorre igualmente quando observo Standing Within The Horizontal (1978) e One Is Three Within (1982). A transformação do espacial, desde as superfícies tridimensionais até as planas, com as multidimensões perceptíveis pela mente -, ocorre diante e junto de mim. Mas não só: ela acontece também por detrás da visão.

“Debruço-me aqui sobre o desenho, uma vez que no desenho, na experiência do desenho, está em jogo a experiência do traço. É a experiência do que vem colocar um limite entre espaços, tempos, figuras… mas um limite que é ao mesmo tempo condição da visibilidade e invisível”.

*

Ao pensar, buscamos, involuntariamente, montar o quebra-cabeça que nos rodeia. É quase uma obsessão tentar juntar as partes ou completar as lacunas na expectativa de suscitar imagens que sejam coerentes e reconhecíveis para nós. Mas a um só tempo, como num jogo ao revés, aquilo a que se chamou percepção parece agir confundindo a nossa experiência do entorno ao criar perspectivas ilusórias distantes do que de fato ali se desenrola – ou se desenha -, abrindo lugar para a fantasia. E, então, duvidamos.

No esforço por compreender o que nos envolve, inventamos narrativas, possibilidades, espécies de espaços. É o que faço aqui, enquanto escrevo. Quando algo destoa do padrão intelectivo comum, como quando um fio ou barbante que, esticado entre dois pontos, se disfarça ou transmuta em traço desenhado na parede e já não é possível saber se é bidimensional ou tridimensional, a percepção enverga, até mesmo se quebra, e somos forçados a reinterpretar o ambiente agora considerando a estranha novidade. Eis o imponderável.

Os trabalhos de Lydia Okumura me tocam pelos espaços entre as coisas que meus olhos podem tocar. Boa parte do que vemos nos desenhos, pinturas e situações da artista aqui expostos, não ocorre nem no espaço entre os nossos olhos, nem nos limites por eles alcançados, mas sim por detrás deles, no seu piscar. Nisso que poderia ser uma “entrevisão”. Pois a piscadela, o sutil movimento das pálpebras, não é apenas o que priva a vista, mas também o que permite ver, “assim como o sentido do texto também se dá nos brancos da escrita”.

Há, ainda, os volumes. Na instalação Relocation Of The Cube (1972), o espaço vazado da grama se preenche e avança, por espelhamento, em direção ao vazio acima do chão – a depender do ponto de vista. Ou melhor, dos pontos de vista. A experiência do espectador é uma consciência refletindo-se a si mesma, quase como em um espelho estamos a refletir-nos a nós próprios. O que acontece dentro de nós é a experiência, e essa experiência é também o meu trabalho. 

O ar entre os cordões fixados nas paredes e no chão da galeria em Sem Título (da série Appearence) se faz preenchido de pintura. As camadas de tinta são tão espessas que criam um bloco maciço e tridimensional. Não o vemos por fora dos olhos, mas ele está lá. Pois o que não é visível é precisamente aquilo que devolve a visão para o observador, lembrando de olhar ver, pensar ver.

*

Tento com um olho ver as obras e com o outro enxergar o que nelas não vejo; o que está lá e o que não está, mas as constitui. Como um buraco, que só existe pelo que se acha à sua volta. Mas “o que é um buraco”? perguntava um palhaço ao seu compadre. Percebendo o embaraço do outro, declara triunfante: “um buraco é uma ausência cercada de presença”, como disse René Daumal em A Patafísica dos Fantasmas. Então, a mim – a nós -, cabe rodear as obras de Lydia Okumura, caminhar nas suas bordas e pelos limites que elas traçam no espaço. Seguir seus fios.

Diante de Vertical/Horizontal (1976), sou lembrado de que enxergo a partir de uma visão binocular: ao tapar um dos olhos, vejo algo diferente do que enxergo ao tapar o outro. Tenho dois pontos de vista em uma única cabeça. Os ângulos de visão a nós revelados por esse políptico, levam-nos a andar mentalmente em um espaço virtual, de possibilidades. E são os desenhos de Lydia que projetam esse caminhar.

É intrigante perceber como abrir e fechar espaços não é tarefa fácil. Quando nos deparamos com o canto no qual está situado Metamorphosys II, onde a pintura das paredes e parte do piso brincam com nossa consciência espacial, é aberto um portal para lugares antes inexistentes; uma passagem que nos leva a reinterpretar o que nos cerca, transformando não só a sua arquitetura, como até mesmo as possibilidades de ocupação por quem nela caminha.

Esse texto é um relato, um ponto de vista. Traço-o assim, “pois escrever sobre uma obra acaba por revelar a nossa projeção sobre ela como desejo de apropriação daquilo que não vemos, daquilo que escapa”. E talvez isso explique as ambiguidades inerentes às minhas tentativas em manter um caminho claro e objetivo enquanto escrevo. Pois escrevo fora da parede, fora do papel.

O que fica em aberto?

O que se completa?

Quais novos espaços surgem quando somos conduzidos pelas obras de Lydia Okumura e com elas passeamos?

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Este texto faz uso de algumas frases de Lydia Okumura retiradas de entrevistas. Estas citações estão marcadas em negrito e itálico.

Cito também a pesquisadora Maria Continentino Freire, na tese “Pensar ver: Derrida e a desconstrução do ‘modelo ótico’ a partir das artes do visível” de 2014, sempre em itálico e entre aspas.

Abstract Relations III, NYC, 1998

ÓLEO SOBRE TELA
UNIQUE
76,5 x 101,5 CM

Evolução, São Paulo, 1985

ACRÍLICA SOBRE TELA
UNIQUE
170 x 170 CM

Sem título, 1980-85

ACRÍLICA SOBRE TELA
UNIQUE
137,8 x 188 CM

Triple Nº1, 2019

BARRAS DE AÇO INOXIDÁVEL
1/2 + 1P.A
82 x 134,5 CM

Mostly independent fields, 1977

ACRÍLICA E SOBRE PAPEL
UNIQUE
76 x 56 CM (6 PARTES)

Triple Nº3, 2019

BARRAS DE AÇO INOXIDÁVEL
1/2 + 1P.A
83 x 112 CM