SABERÁ/AS FILHAS DO MENOR CHUVISCO nos apresenta vários princípios constitutivos ou forças propulsoras que conectam o pensamento e a trajetória artística de Jota Mombaça com suas movências e desterritorializações pessoais, dentre elas: a cinesia das transições de vária ordem, as moradas, os climas e atmosferas, as temporalidades, os aterramentos ou soterramentos, e as ações de escavar. Aqui transitam obras que reinauguram a presença de Jota no Brasil, após intervalos, ora longos, ora curtos, em que morou e se moveu pelo mundo, tornando-se uma celebrada referência internacional.
Essas premissas e asserções são vitais, pois compõem a gnosis de um pensamento rico e dinâmico, que se aporta em variados materiais, dispositivos e suportes nos quais se projeta a arte de Jota: as criações com o barro, as telas, as sonoridades, o vídeo, a performance. Em tudo, o corpo também movediço se instaura, veículo e ambiente de assentamento de suas fabulações e inscrições estéticas, criando uma dramaturgia perceptiva e sensitiva de efeito imagético poderoso, cinético por excelência.
Aqui, esta artista multifacetada, exercita o trânsito como mote contínuo de um deslocamento que se faz ele mesmo índice de transposição, passagens, travessias, resiliência, desmontagem, compromissos éticos, que, por sua vez, agenciam sua potente e forte linguagem estética. O que é exposto se faz enunciar pelos entrelaces que, na composição relacional, se complementam, se suprem e se nutrem, propiciando nuances de sentidos e ressignificações. Deslocar territórios, modos do fazer, atos de refazer, restituir e reconstruir, instituem vínculos, entre seres e coisas, muitas vezes inesperados.
Como o tempo, Jota, em cada traço, se reinaugura, espirala, reelaborando e desdobrando a poética do soterramento que desenvolve desde 2014. Nas formulações criativas dessa poética, clivada pelos deslocamentos, trânsitos, retiros, lacunas, carências e resiliências, as alusões às incertezas e revolvimentos do planeta, em seus pulsos de instabilidade climática, evocam suas próprias trajetórias de construção identitária e suas subjetivações em devires, suas metamorfoses, traduzidas insistentemente nos atos de cavar, escavar, soterrar e desaterrar.
Jota inscreve nos gestos contíguos de escavar e de aterrar um inevitável e desejado retorno aos vãos e saliências da terra, estabelecendo uma íntima relação com o barro, o chão, matéria prima de nutrição e busca de pertencimento. Escavar e aterrar-se nos remete ao abrir-se à junção desejada e aos vínculos do corpo com os elementos e substâncias que habitam a terra, suas películas e abissos, mas é também um movimento simultâneo em direção ao alto, àquilo que se projeta para o exterior do ser, um escavar para o alto, como revela em “O Nascimento de Urana”.
Nas telas, os círculos concêntricos e excêntricos manifestam a ideia de um revolver inquieto e acelerado da água-lama, figurando o caos climático, desenhando-se como esqueletos de casas tragadas por convulsões e redemoinhos, sugadas na direção de um fundo devorador, sombrio. São como cenários e suspiros de um planeta revolto, em estado agônico. Traços fortes, em tons turvos, se curvam e se retorcem. Mas esse mesmo movimento de destruição e de sucção parece manter, ainda que tênue, uma pulsão de vitalidade, um sopro de esperança, pois as linhas que atravessam os remoinhos se atiram para seu exterior, para além das bordas, como se quisessem romper o estado de destruição e de distrofias, na procura de um cuidado a vir, uma restauração a acontecer, em busca da respiração desejada, nutriente.
Nas cerâmicas, seu formato alude a objetos cerimoniais, e seus desenhos evocam sutilmente expressões faciais, olhos, órgãos talvez, vultos, que se projetam também para o alto como se deixassem exalar seu conteúdo. Como seres rituais parecem ali estar, não para conter ou guardar algo, mas como vãos que expiram o contido, em frequências de vibrações, oferecendo-se como passagens dos hálitos, aromas e transpirações dos elementos que os formam e que neles sussurram. Oferendas. São inscrições que grafam as superfícies como signos e evocações de um pertencimento atemporal, que religa o humano a todo o seu entorno, às suas naturezas, continuamente buscadas, escavadas, atualizando a memória ancestral de uma relação congênita. Lembranças de um ser, que é planeta-moradia, moradas, casa.
Que moradas são essas?
São a terra-chão, a terra-lama, que, por sua vez, se transmutam no corpo- terra, no corpo-lama da tela, no corpo-respiração, aspirando e expirando, transpirando ares corrompidos; no corpo-água que também é o corpo- sede, o corpo-transtornado, seco, mas também o demasiadamente aguado; um corpo-imagem ruidoso. Tudo isto formando, construindo um corpo-tela poroso, compósito de múltiplos assentamentos e substâncias nutrientes ou tóxicas. A paleta de cores marrons e escuras que, em seus tons e matizes, cria uma luminosidade fosca, opaca, quer nas pinturas, quer nas cerâmicas, reforça a presença material e simbólica do barro, matéria de criação, em estado maleável, a sempre refazer-se e a se oferecer à recriação contínua, líquida e fluida.
No vídeo, a imagem do soterramento esculpe um pujante auto-retrato, em que a face se retrai da posição frontal em relação ao espectador, e parece projetar-se para o alto, como se quisesse mover o olhar-câmera que a capta e contempla. A face aterrada, como imagem espacial, redesenha a película do planeta, suas superfícies e enigmas, posta de modo a ser vista de cima, de distâncias que ampliam seus infinitos horizontes. A face figura-se, assim, corpo composto por todos os elementos terra que o formam. Um convite a uma rotatividade ampliada do olhar que ativa e recompõe nosso pertencimento cósmico e planetário, na mesma medida em que aciona nossas responsabilidades. E que exige o deslocamento da mirada, pois se exibe como algo a ser observado, pensado e tratado como parte integrante do cosmos, no movimento de translação do planeta terra, sua morada.
Este princípio de mutação, agência motriz, é um dos aspectos da poética de Jota que, neste trabalho, se reafirma e se encorpa. A cinesia dinâmica que cadencia circulação e confluências, e os processos que conectam as obras, umas em relação a outras e às espacialidades que as tecem, e a fabulação do movimento no íntimo mesmo das peças, em sua coreografia interna, produzem um efeito constante de locomoção, mutabilidade, transitoriedade. E é nessa fluência que Jota performa, com primor, as temporalidades descontínuas de suas andanças, de suas subjetivações, aterradas e desterradas que, simultânea e sincronicamente, exercitam várias direções e sentidos, para dentro e para fora, para o interior e para o exterior, para o baixo e para o alto e para os lados, desenhando espirais não-concêntricas, sempre em processo de refazimento e de tecelagem. E que simulam um tempo também sempre reinaugural, que se refaz nas curvas das experiências estéticas e das vivências subjetivas, traduzidas na potência de suas linguagens artísticas e de uma fina e sofisticada percepção cósmica, atravessada por afecções e postulações complexas, criativas e criadoras.
Nas sinapses do movimento, como ação e traço, a canção “Djaniras”, composta por Israel Semente e Xangai, e executada por Cátia de França no álbum de 1979, Vinte Palavras Girando ao Redor do Sol, introduz os pulsos de uma cadência célere, de um ritmo inebriante que, pelo contraste, extensão e gradações tímbricas e melódicas, interage com as cores frias predominantes nas peças, conjugando-as com uma quente e vibrante voz. A canção, mais do que nomear a exposição, torna-se, assim, um referente e um gradiente sonoro, uma vocalidade pulsante que invade os silêncios e se solta pelos ares, como se fala fosse dos objetos expostos.
Saberás, então, que, como filha do menor chuvisco, Jota retorna. No que realiza, manifesta um recorrente desejo de não se acomodar, de insurgir- se contra as repetições paralisantes do mesmo, de incidir nas estruturas que promovem as violências e violações pessoais, sociais e em relação ao planeta; de expor os abalos e transtornar seus códigos; de arruinar sua lógica destrutiva; de transformar seu pensamento em ações criativas insurgentes, potentes, instigantes e cinéticas, incômodas.
Diz um provérbio angolano que aquela “que vai e que volta, não é a que vai, mas a que volta”. Neste seu desejo de fazer-se terra, de tornar-se chão, de reconectar-se também com o que chamamos Brasil, Jota Mombaça nos transpõe dos torpores da cômoda espera, do desejo sempre adiado do impossível, e nos arremete e dispõe ao encontro de uma realização que se faz no agora, como intervenção intensa e irradiante no presente que, como o barro, em seu estado de inacabamento e de incompletude, está aí para ser transfigurado.