Martins&Montero anuncia a exposição The urgency of intimacy, mostra inédita que aproxima dois artistas de gerações e contextos distintos: Charbel-joseph H. Boutros (Líbano, 1981) e Hudinilson Jr. (Brasil, 1957–2013). É a primeira vez que os trabalhos destes dois artistas são colocados em diálogo, instaurando uma interação inédita que abre novas leituras sobre retrato, autorretrato e seus desdobramentos estéticos e políticos. Ainda que distantes em tempo, espaço e trajetória, ambos compartilham a convicção de que o íntimo pode ser um ponto de partida para atravessar o mundo.
Hudinilson Jr., uma das figuras mais marcantes da sua geração, trabalhou com a fotocópia como se fosse uma extensão da própria pele. Ao reproduzir incansavelmente partes do seu corpo, distorcê-las, ampliar detalhes até transformá-los em pura textura, inventou um exercício radical de autovisão, no qual a identidade se dilui no gesto de olhar-se. Seu corpo, em cópia, deixava de ser apenas corpo: tornava-se campo de desejo, de política, de questionamento sobre os limites da representação. Ao mesmo tempo, sua prática colecionava imagens e arquivos — desde recortes de jornais até fotografias banais de esportistas ou atores — em busca dos pontos em que a sensualidade masculina irrompe nas frestas da cultura popular. Hudinilson descobria sexualidade e vulnerabilidade em lugares onde o olhar comum via apenas rotina ou entretenimento, revelando o potencial político de um íntimo exposto em meio a convenções sociais.
Charbel-joseph H. Boutros, um artista de voz singular entre Oriente Médio e Europa, desloca o retrato para fora de sua função mais imediata. Seus trabalhos expandem o gênero para campos mais abstratos, poéticos e conceituais. Em Night Cartography, por exemplo, um lençol recém-estreado é usado pelo artista durante uma noite, impregnando-se de seus sonhos. Na manhã seguinte, Boutros recolhe os jornais do dia, reduz-os a cinzas, mistura-os com água corrente de Paris e um aglutinante e mergulha o tecido neste composto. O gesto transforma o íntimo em matéria atravessada pelo mundo: os sonhos noturnos cobertos pelo pó de acontecimentos coletivos. A obra é tanto uma cartografia pessoal quanto um retrato do tempo histórico, simultaneamente contaminado e iluminado por aquilo que nos rodeia. Em outro trabalho, Spring, um vaso de terracota feito a partir de 93 rolos de argila — uma por dia, durante toda a primavera — torna-se a tradução de uma estação do ano. De fora, a peça é lisa, quase clássica; como um vaso funerário diante das colagens de Hudinilson Jr., por dentro, revela suas camadas temporais, como se fosse possível entrar no interior de uma memória. Ao adicionar materiais invisíveis e inesperados (como sonhos, lágrimas, medo, esperanças, suor…) ao corpo físico de suas instalações, H. Boutros inaugura um novo território na concepção de trabalhos artísticos e dá forma a retratos implacáveis e ao incalculável quociente humano que se esconde por trás do que é tangivelmente visível. Isso fica claro, por exemplo, na obra 03 386051, um retrato de amor e morte, em que o artista apresenta o celular de seu falecido pai, um pequeno objeto encapsulado nos gestos de sua mãe para mantê-lo funcionando e carregado durante os últimos sete anos, desde a morte do marido. Uma instalação criada a partir dos materiais reais da morte e do amor.
Ao colocar lado a lado os trabalhos de Hudinilson Jr. e Charbel-joseph H. Boutros, Martins&Montero propõe um encontro improvável, mas profundamente fértil. A força sensual do corpo de Hudinilson encontra a abstração poética de Boutros, que expande o retrato em gestos performáticos e conceituais. Se Hudinilson expõe o corpo como território de identidade e revolução, H. Boutros apresenta o sonho, a memória e o tempo como retratos do invisível. Em comum, ambos apontam para a urgência da intimidade: não como retraimento, mas como potência transformadora, capaz de iluminar tanto o que é individual quanto o que é coletivo.
Essa exposição inédita convida o público a repensar o retrato para além da fisionomia. Aqui, o retrato não é apenas imagem: é textura, arquivo, política, memória, sonho e desejo. É um espaço de fricção, no qual o íntimo se expande e se converte em experiência estética e revolucionária.