Ana Mazzei

Cena de jardim

São Paulo
09.11 — 22.02.2025

Cena de jardim

Bernardo José de Souza 

Sobre a relva, um grupo de esculturas estabelece uma interlocução cifrada, buscando mascarar sua natureza artificial e, assim, ganhar vida própria. Disformes, tais figuras transmutam-se em outras coisas e seres, burlescos, quiméricos, trágicos ou mitológicos: uma dramaturgia produzida ao relento, de modo a solapar a realidade que se impõe extramuros, vertendo veloz pelas vias da metrópole. Burlar a noção de natureza parece ser o propósito oculto de tais corpos, intrusos num jardim residencial para que suas formas grotescas se insinuem ainda mais selváticas.  

A ideia de natureza —uma projeção essencialmente ocidental—, seja ela científica ou romântica, somente ganha sentido a partir de sua oposição à ideia de cultura, de um mundo construído e, portanto, artificial. Embora as formas da chamada natureza tenham sido apropriadas pela cultura ao largo dos tempos —da mitologia grega à botânica, passando pela agricultura, pela jardinagem, pela pintura de paisagem e pelo Art Noveau—, a distinção entre o caráter espontâneo e indômito do mundo “natural” e o racionalismo que busca ordená-lo, recriá-lo e tipificá-lo permanece no Ocidente como pedra de toque para que seja possível aferir a genuinidade de um ente qualquer, orgânico, inorgânico ou artificial. Um bom exemplo desse embate entre cultura e natureza são os jardins formais franceses e paisagísticos ingleses dos séculos XVII e XVIII, respectivamente. Enquanto os primeiros controlavam as formas vegetais de modo rigoroso e racional, a elas impondo ordem e geometria —como nos labirintos verdes ao ar-livre—, os segundos tratavam de emular uma dimensão idílica e romântica, fabricando grutas artificiais, simulando bosques e erguendo falsas ruínas. Em ambos os casos, todavia, a natureza se apresenta como forma idealizada, forjada pela vontade humana, uma espécie que dela se afasta com o intuito de melhor controlá-la.

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“Now, reality might have to interfere, at last.”

Charlie Fox

 

Inspirada nas pinturas de paisagem, mais particularmente na obra “Le Déjeuner sur l’herbe” de Édouard Manet, Ana Mazzei vai construir sua versão mui sui generis das conversation pieces do século XVIII —quadros nos quais um grupo de pessoas se punha em aparente espontâneo diálogo, imersos em bosques e florestas ou mesmo em interiores. Como de resto em toda sua obra, a artista vai aqui evocar uma dramaturgia orgânica, interna às suas próprias formas, um jogo de cena no qual diversas esculturas interagem à guisa de um apólogo grego, nos quais entes inanimados conversam entre si, como que dotados de agência própria.

Mas ao situar suas esculturas num jardim residencial, Mazzei se afasta da arquitetura arbitrária dos espaços expositivos, lançando seus “atores” em novo terreno, em franco contato com a “natureza”, em que pese sua feição doméstica. Desde o princípio de sua trajetória, a artista vem investigando expedientes teatrais, de sua infraestrutura —a arquitetura dos palcos— até sua expressão estética e discursiva: a boca de cena. Mas se, antes, a plataforma teatral era estruturada de modo a incorporar peças escultóricas cujo rigor formal era eivado de uma eloquência silenciosa, velada, desta feita suas esculturas fogem à severidade discursiva dos “palcos” para expressar monstruosas facetas ao ar-livre. Em Cena de Jardim, o que parece estar em jogo é a própria animalidade das criaturas postas em cena, como se, distanciadas do espaço controlado da galeria, fossem infundidas de alma própria, pondo em suspenso sua condição inorgânica ou artificial.

Embora a artista sempre tenha confrontado a artificialidade dos espaços de convívio e os discursos encenados pelos “atores” de suas orquestrações plástico-dramatúrgicas, na presente exposição ela põe em xeque a ideia própria de mise-en-scène. É como se sua atenção houvesse sido deslocada do cenário para os atores, algo que Mazzei logra fazer quando os liberta na “natureza”. Evidentemente, este expediente dramatúrgico apenas faz sentido ao passo em que a própria natureza de suas peças é transfigurada. Nesta exposição, ela deixa de falar exclusivamente do fator humano investido em suas geométricas formas arquitetônico-escultóricas para tangenciar o caráter fundamentalmente animista das criaturas por ela engendradas. Não obstante, apesar da animalidade do design ter sido já experimentada por Mazzei em suas obras antropomórficas anteriores, agora a ideia de natureza em si parece ocupar o primeiro plano da narrativa. Sob este novo signo de teatralidade, noções de humanidade, bem como daquilo que se quer natural ou artificial, passam a ser escrutinadas en plein air.

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“A invenção política opera-se em atos que são ao mesmo tempo argumentativo e poéticos, golpes de força que abrem e reabrem tantas vezes quantas for necessário os mundos nos quais esses atos de comunidade são atos de comunidade. Eis porque o ‘poético’ não se opõe ao argumentativo.”

Jacques Rancière

 

A ficção anteriormente latente em suas esculturas ora ganha expressão na monstruosidade de figuras vagamente reconhecíveis, pois resultado de um hibridismo barroco, que transforma estrutura em corpo vivo ou, ao revés, corpo vivo em estrutura. E ao entender o corpo, ele próprio, como construção, Mazzei ignora noções de natureza e cultura e apresenta suas esculturas como tecnologias da imaginação. Assim, a sequência de peças no jardim demanda uma aproximação político-semântica que desvirtua a estrita humanidade ou animalidade das quais aparentemente são imbuídas. Em Cena de Jardim, a condição humana passa a ser subjugada por força do seu próprio design, ou mesmo por força de sua imaginação; ou, quem sabe, ainda, por força da humanidade que atribui vida ou morte a tudo que toca, ainda que no plano filosófico. Neste sentido, a pequenina bailarina suspendida mais se parece a uma marionete, objeto e vítima de sua própria orquestração dramático-psicológica. A bem da verdade, Mazzei já havia submetido o humano à engenharia de suas próprias maquinações, como na série de cadeiras “Garabandal”, que exigem do corpo curvar-se à tecnologia por ele mesmo construída —ou, então, quando a artista esquarteja este corpo, desmembrando suas partes, sejam mãos, pés, cabeças, desnaturalizando a suposta unidade humana.

Mazzei produz uma pós-natureza sem hierarquias entre entes inanimados e seres vivos, sem uma ontologia própria das coisas que habitam o mundo tangível, algo que é levado ao paroxismo nos títulos das peças. Enquanto alguns evocam uma tecnologia oculta na deformidade da peça, como “Fone”, outros se autorizam a meramente descrever uma forma —é o caso de “Aba” ou “Tripé”. Na contramão de um esforço semiológico para discernir significante de significado, as obras são nomeadas inspiradas numa primeira impressão das coisas. Seja como for, o fone também poderia ser um dromedário, bem como a aba um adorno de cabelo, e a estrela uma coroa.

Numa espécie de farsa trompe-l’oeil, as peças escultóricas se assemelham a criaturas prostéticas de distintas constituições, as quais se entrelaçam de modo a erguer uma caligrafia truncada de formas orgânicas e geométricas. A madeira, matéria prima de predileção da artista até o presente momento, frequentemente utilizada para reforçar uma certa condição frágil, precária e mambembe das peças, agora é posta vis-à-vis à solidez do bronze, cujas pátinas coloridas dão movimento e tridimensionalidade aos corpos em transição. Mas algo de humano parece ter sido perdido no decorrer do processo de criação dessas criaturas. Um embotamento da percepção do mundo faz com que qualidades de solidez, perspectiva, anatomia e dimensão sejam abandonadas, embaralhadas num balé esquisito, transnatural. Por vezes, a mise-en-scène circense de Cena de Jardim dá a impressão de fazer troça do público, como se, por alguns instantes, fôssemos nós a anomalia, os corpos estranhos no jardim, e aquelas esculturas o produto de uma natureza mais genuína que a nossa, a da espécie humana.

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Sobre o filme:

Em branco e preto, assistimos aos movimentos intuitivos de um bicho estranho, em parte pássaro, em parte humano. A figura se move pelas linhas férreas e sinuosas, contrastando organicidade e forma técnica. Muito embora dotada de um psicologismo animal, esta peça audiovisual vai evocar um cinema felliniano —um ar de melancolia perpassando a paisagem e o corpo da bailarina-pássaro, de forma a fundir um ao outro. A trilha sonora atualiza as imagens com um golpe punk, acentuando a violência do embate entre o que se quer humano, animal e artificial. Mas a comunicação entre essas esferas, em teoria exangues, acaba por vingar: uma ave se reconhece no híbrido pássaro-bailarina, e vice-versa, donde a unidade entre cultura e natureza uma vez mais se refaz. Ou não, afinal, nos palcos, existe sempre uma quarta parede a tornar a vida uma obra ficção.

 

 

Chifre, 2024

Bronze, pátina, tinta à óleo
Unique
149 x 39,5 x 45 cm

Bailarina com máscara, 2024

BRONZE, PÁTINA
UNIQUE
150,5 x 31 x 25 cm

Língua, 2024

Bronze, pátina
Unique
162 x 44 x 58 cm

Estrela, 2024

Bronze, pátina, madeira e óleo de madeira (polisten sayerlack castanheira)
Unique
74 x 87 x 29 cm

Caverna azul, 2024

Bronze, pátina
Unique
20 x 47 x 23 cm

Altar, 2024

BRONZE, PÁTINA, MADEIRA
UNIQUE
74 X 87 X 29 CM

Fone, 2024

Bronze, pátina
Unique
106 x 53 x 14 cm

Pica Pau, 2024

Bronze, pátina, tinta à óleo, ferro
Unique
87 x 70 x 33 cm

Aba, 2024

Bronze, pátina
Unique
60 x 49 x 23 cm

Cerca, 2024

Bronze, pátina
Unique
187 x 162 x 56 cm

Pés de bailarina, 2024

Bronze, pátina, madeira garapeira e óleo de madeira (polisten sayerlack castanheira)
Unique
65 x 80 x 24 cm

Tripé, 2024

Bronze, pátina, tinta à óleo
Unique
82 x 70 x 10 cm

A bailarina, 2024