Um erotismo abissal se insinua pela geografia inconsciente deste mundo. Paisagens de terror e tesão, um pornô sob os escombros e a promessa valente de um desejo cuja produção é negativa; um desejo cuja produção é interruptiva dos modos consagrados de ver e ser visto, de foder e de estar fodido, de ser e deixar de ser, de dizer e pensar. Aqui, não interessa o todo, senão o fragmento; não fala a voz, senão o corte; não tem contexto para a justa medida, apenas coreografias de excesso e falta, sangue novo e antigo, um jorro desejante negativo através da noite quente.
Desde 2013, talvez seja possível dizer que as coisas mudaram. Não sou de insinuar grandes narrativas, e por isso evitaria a tentação de fazer destes movimentos íntimos uma expressão da macropolítica – todos os dias morremos, falamos só e fazemos eco, corremos da polícia, pixamos a estátua de um colono, renascemos e nascemos, desistimos, aguentamos um pouco mais… Mas sim, é verdade que o campo de força de revelações mais amplas incide sobre a coisa pouca do nosso destino, da nossa vontade de arranhar a matriz do real, e de rasgar com as próprias mãos uma coisa e outra. Mudar as coisas é a fantasia que dá circulação ao sangue em nossas veias, mesmo quando estamos cercadas pela força reativa das polícias de costume e dos senhores da vitoriosa história.
Quando Hudinilson Jr. morreu era minha vez de caminhar pelos infernos. A primeira vez que entrei em contato com seus arquivos, muitos anos depois da sua passagem, eu tomei um susto porque notei que, apesar de caminhos e posições tão diversas, havia uma sombra na qual nosso desejo se encontrava. Ao consultar pela primeira vez um de seus Cadernos de Referência, fui tomada pela urgência desse erotismo abissal, e quis mesmo lançar meu corpo num mergulho único contra o asfalto da cidade que o consumiu – uma vontade de beber tudo, de engolir tudo, de colher minha parte da dor e do prazer de todas as coisas. No diagrama dessa vontade, uma pulsão incontinente para que, por meios de cortes e recortes, a realidade saturada à nossa volta se esgotasse, se desintegrasse em mil e uma recombinações possíveis e impossíveis.
Alguns arquivos são feitos para ferir a grande memória, para convocar as narrativas grandiloquentes a chafurdar na lama do vivido. Meu mergulho nos Cadernos de Referência de Hudinilson Jr. serviu para me convencer de que eu estava diante de um tal arquivo, cujas intenções extrapolam a do documento histórico, embora sem dúvida se situem num certo tempo, no passar de certos anos dos quais o artista foi testemunha. Antes, tal arquivo se dedica à complicação das versões vigentes e seus desdobramentos hegemônicos. Acontecimentos nos campos políticos e das artes, recortes de revista, notas de jornal sobre tudo e qualquer coisa, sobrepostas a samples de papel de parede, melados por um desejo explícito… Entre picas duras e poemas fragmentados, as composições não formam o retrato de uma época senão a sua extrapolação, por vezes violenta.
É dessa extrapolação – que eu, aqui, nomeio “desejo negativo” – que se trata essa exposição. A obra de Hudinilson Jr, especialmente os Cadernos de Referência, ora já situada numa certa escala de reconhecimento internacional, é apresentada aqui como um outro plano de extrapolação. Elaboradas desde – e contra – a posição social de um artista bicha cis gay branco da classe média paulistana, obcecado pelas rachaduras no espelho narcísico, as obras de Hudinilson Jr podem, apenas, ganhar pleno sentido quando recontextualizadas por ecos e dissonâncias que se estendem à sua passagem pela vida. Não se trata de tecer um plano de reverência, e de buscar traçar uma historiografia que assume a obra do paulistano como gênese. Antes, trata-se de trazer Hudinilson de volta à rua dos processos transformativos aos quais ele foi sensível.
As artistas Bruna Kury e tetê não são, aqui, apresentadas como autoras de meros desdobramentos geracionais dos gestos de composição de Hudinilson; nem sequer solicitadas a tecer relação com a obra dele como uma anterioridade. Prefiro deixar as linhas retas da história da arte para o fundamentalismo branco hetero-cis-sexual, a que pertence toda monocultura. Aqui há relação, toque, um suor que se mistura, fluidos que se deslocam entre os corpos, poemas que já não temem a incompletude e nem pleiteiam a grande história das coisas.
Um quebracabeça dentro de outros quebracabeças, 2025, obra de Bruna Kury comissionada para o contexto desta exposição, continua a série de “quebra-cabeças” da artista a partir de um investimento errático na colagem digital e no processamento da própria memória. Oriunda do Rio de Janeiro e hoje radicada em Barcelona, Kury dedica-se à prática artística interdisciplinar e comunitária. Marcada por um intenso deslocamento existencial e geográfico, a obra da artista intersecciona a luta por direitos sexuais e de gênero com uma percepção implicada das tensões e conflitos territoriais associados à nacionalidade, à violência imperial e ao racismo estrutural.
Como uma extrapolação do espaço expositivo e do território onde este se situa, o gesto de Kury é o de um envelopamento – como se, ao adentrar a sala, fôssemos engolidas pelo quebra-cabeça e imediatamente incorporadas ao movimento replicante desses gestos. Como desejo negativo, a obra de Kury impõe um intervalo na nação heterosexual, na geografia branca e no especismo cisgênero. Há muito para olhar aqui, na trama desse avesso. Muito. Há uma produtividade e uma consistência próprias da recusa, da contestação, da performance de virar o jogo contra o próprio jogo – de multiplicar os quebra-cabeças dentro do quebra-cabeça.
Essa produtividade – ou contra-produtividade – do desejo negativo é o que complica o assentamento da experiência cuir, gênero-dissidente e sexualmente desviante no mundo como o conhecemos. Onde as figurações do Normal Policiado desse mundo demandam a apatização do desviante, o desejo negativo estoura como um raio, rejeitando simultaneamente a reprodução das condições normativas da existência gênero-sexual colonizada e a desprodução do próprio desvio. O desejo negativo quer desviar. Quer produzir a curva; quer afirmar a dúvida; quer participar retirando-se; quer contribuir sabotando; quer expandir o que ficou reduzido e reduzir a expansividade do império corpo-político.
Em bote (por uma noite apenas ou até que a morte nos separe), 2025, o retrato de tetê está cortado bem em baixo do nariz. Com a boca desenquadrada, o bote é total, porque não se sabe exatamente o que está a ser abocanhado – e poderia mesmo ser qualquer coisa. A obra se apresenta como um billboard fixado à fachada da galeria, numa relação perpétua com a rua. A relação com o exterior não retira o caráter íntimo da fotografia, que oculta mais do que revela, apesar da luz estourada e da escala monumental. Mais até do que o que estamos vendo, o trabalho nos obriga a pensar sobre o que tetê vê. Por que esses olhos úmidos? Como pode ser que uma tal vulnerabilidade corte, rasgue a tela?
Como desejo negativo, a obra de tetê é um retrato de si que falha em constituir uma auto representação. Por reverência ao irrepresentável, ela retrata a irrepresentabilidade do que está fora do quadro. É uma obra que faz querer abrir a boca para o não se sabe bem o quê. Ela não é polissêmica por dizer muitas coisas, mas por apostar em sentidos cujo dizer talvez ainda não esteja pronto. Nascida em Marabá e radicada em Recife, a artista, cuja prática investiga a relação entre arquitetura, desejo e o domínio da fotografia, guarda uma profusão de potenciais para a boca, liberando esse órgão do seu lugar cativo no corpo e na história; e ela transforma o olhar da artista num plano de extrapolação, numa ponte para fora da tela e contra ela.
É nesse espaço, esse fora que não é a Rua da Jamaica, não é sequer a Cidade de São Paulo, mas a geografia de um poema inteiramente dedicado à consistência contra-produtiva desse desejo pelo que não tem nome, dessa fome de ver o mundo acabado e refeito e acabado de novo, que esta exposição se manifesta. Como uma pequena fissura por onde vaza o possível e o impossível, a matemática incalculável do desejo e a gravidade que empurra o corpo para a terra. A conversa entre tetê, Bruna Kury e Hudinilson Jr. forma, assim, um terreno movediço, cheio de encontros e desencontros, que dão corpo a uma manifestação que abdica da história em favor da erótica, e nos convoca a flertar com esse desejo que é um abismo e uma ponte.
ARTISTAS
Bruna Kury
Hudinilson Jr.
tetê