Frustradas pelos entraves implicados no conceito dominante de tempo linear, as experiências cotidianas e as narrativas “da realidade” ocidentais tendem a ser insensíveis às noções de dimensões espaço-temporais coexistentes. O conjunto de pinturas a óleo figurativas, sedutoramente ambíguas e de pequeno formato de Rebecca Sharp em Sou um Lugar, oferece vislumbres das negociações visuais perambulatórias da artista acerca dos antagonismos humanos, das relações sem fronteiras entre sujeitos, objetos e as suas localizações como um meio de considerar a coexistência multidimensional e pluritemporal.

Entusiasta da meditação, Sharp tem também um mestrado em Filosofia Budista o que, sem dúvida, fundamenta a sua prática artística. Se, por um lado, o pensamento Budista enaltece uma noção cíclica da existência, por outro lado, as visões cristãs guardam a chave original do predominante modelo ocidental de “princípio, meio e fim” dos discursos lineares. Enquanto a compreensão de causa e consequência do primeiro se desenrola no âmbito da contemplação e da valorização sistêmica da presença, da transitoriedade e de uma apreensão do espaço básico como ilimitado e não circunscrito por fenômenos, incluindo o tempo e o espaço, a visão causal do último proporciona uma sensação de vinculação a um espaço e tempo limitados, ao custo de estimular um senso de urgência visionário, voltado para o enfrentamento da permanência.

Uma pluralidade de estruturas culturais pode influenciar e moldar a contemplação contemporânea da existência e as tensões que surgem entre narrativas e crenças concorrentes. Se uma pintura pode ser entendida como o seu próprio universo, o de Sharp é multifacetado. Permeados por hibridismos e dualismos, fricção e fluxo coexistem, assim como permanência e impermanência. O espaço é subdividido, mas integrado, coerente e incoerente, interior e exterior, específico e genérico: um espaço e um lugar. Os objetos aparecem em sua própria escala, a um só tempo de maneira independente e em relação uns aos outros e aos espaços e lugares que ambos ocupam e são. Alguns objetos flutuam, enquanto outros repousam em superfícies. A luz viaja por seus próprios e singulares caminhos, independentemente do que encontra, do que se torna ou de onde ou para onde emana. Essas pinturas são universos sistêmicos em si mesmas, mas também o são os elementos individuais que as compõem. Em suas pinturas, Sharp apresenta os aspectos como se cada um fosse uma unidade autossuficiente que, a um só tempo, está interconectada e coexiste com outras no espaço, no lugar e no tempo. As barreiras lineares convencionais são aqui colapsadas, propondo vislumbres e rotas para outras compreensões da existência.

How to Safely Explode (2023) disponibiliza as ferramentas e os meios necessários para encarar a antagônica tarefa estabelecida no título. Essa intrigante pintura contém muito, sem parecer abarrotada, e anuncia uma pluralidade de objetos: um cristal central e uma bananeira, um coração flutuante, um macacão pendurado em um cabide. Uma figura humana de perfil com um bastão de dinamite no topo da cabeça e velas que parecem verter de seu ventre.  Um ramo de folhagem com bagas vermelhas, colares de contas. A borda franzida de um tecido colorido que lembra anêmonas desponta em primeiro plano. Uma esfera escura e uma haste gotejante suspensas em uma atmosfera indefinida.

Um etos semelhante aparece em outras pinturas, como Just Give me a Moment, Fruit Silicone e Sitting and Talking (todas de 2023), nas quais janelas, formas côncavas e convexas de frutas fatiadas, conchas, flores e bocas ampliam o léxico visual da artista oferecendo portais de entrada e saída, ao redor e em volta da dimensão visível. De maneira similar, há os geodos em Wise Ecstatic Polycule e I Love Doing this with You (ambas de 2023) e as protuberâncias pendentes na árida paisagem de pervinca em I will Voice your Secrets Elsewhere (2023). Enquanto as pinturas supracitadas parecem conter as pulsantes tensões de uma coexistência espiritual e terrena sem impedimentos, Amanheceu na Lagoa e All is Well that Ends Well (2023) se mostram mais sombrias. O léxico de Sharp é composto por uma série de figuras e expressões visuais que frequentemente surgem durante a prática de meditação da artista, e pode-se dizer que a obra dialoga com predecessores históricos da arte como Hieronymous Bosch, Giorgio di Chirico e Kay Sage, para citar alguns.

Sou um Lugar é uma oportunidade para mergulhar em pinturas que são, a um só tempo, comentários visuais fragmentados e interconectados sobre o desafio às convenções e sobre o anúncio de paradoxos como meios de expressar as ambiguidades e tensões da existência e da psique humanas, as armadilhas da cultura, os cenários utópicos e distópicos coemergentes e a busca de rotas para a liberdade. Como frutos do ambiente cultural da cultura ocidental do século XXI, ao observar o trabalho de Sharp é inevitável não considerar suas proposições e alusões em relação aos discursos decoloniais, raciais e de gênero. À luz da linearidade, da categorização e da individualidade hegemônicas em contraste com as holísticas, sistêmicas e multifacetadas compreensões da existência, é o processo cíclico e contínuo de libertação das armadilhas dos “ismos”, da linguagem e do poder, do espaço e do tempo que intriga e que oferece um vislumbre para considerar maneiras ulteriores de lidar com a surrealidade da existência humana contemporânea e suas tensões antagônicas.